quinta-feira, 30 de julho de 2009

A atracção da cultura clássica

O mundo clássico é para Eça outra saída para a fantasia. Lembre-se A Perfeição. Desde há muito, ainda mais desde Herodes o Grande, que este mundo marcava forte presença e atracção na Palestina. O conto conserva disso vestígios. Vejam-se estes dois textos simétricos e tão violentamente distantes, no segundo dos quais transparece uma autêntica veneração pelo mundo grego pagão:

Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. Encontrara ele, por acaso, esse profeta novo da Galileia que, como um deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do fariseu escureceu enrugada e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso:
- Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores...
E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados – o furioso doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os Sorvos de Obed, uivando: «Racca! Racca!» e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim.
Samaria foi reconstruída magnificamente por Herodes o Grande, que a rebaptizou para Sebaste (palavra grega correspondente a augusto), em honra do imperador. Estas ruínas conservam memória da reconstrução herodiana.

Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico de um templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de falhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do Sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo sacerdote. Conhecia ele um novo profeta que surgira na Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:
- Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arre­batar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca tolha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!
Herodes foi um grande construtor e entusiasta da cultura romana. O Túmulo dos Patriarcas em Hebron aqui representado é a sua obra mais bem conservada.

Hoje sabemos bem que este encanto pela antiguidade, ao modo renascentista, é ingénuo. Lá como cá, sempre houve bons e maus, gente sensata e gente insensata. Em Atenas, os cidadãos não eram todos Sócrates, Platão, Ésquilo ou Sófocles, Demóstenes, etc. Em Roma, os imperadores não foram todos como Augusto ou os poetas como Virgílio. Na antiguidade, houve os Aristófanes e os Catulos e os Petrónios e os Neros. Os escravos contavam-se por milhares... E a arquitectura de Roma não parou com Vitrúbio. Evoluiu largamente. O resto são idealizações, e por isso fez tanto sentido a reacção quinhentista do Maneirismo.
Teatro de Gerasa na Decápole, hoje Jordânia.

Além disso, o adorador do Deus único, por muito desajeitado que fosse a tratar com o seu semelhante, estava bem mais próximo do melhor que produziram os grandes pensadores gregos que o sacerdote de Apolo.

Da primeira versão à terceira - correcções

Não há-de ser fácil fazer reviver perante o leitor um mundo tão distante. Veja-se como Eça fez uma correcção no seu texto:

Nas vizinhanças de Hébron arrastaram para fora das grutas os solitários, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar onde se escondia Jesus de Galileia; e a ignorância de dois mercadores, que vinham de Jope com uma carregação de malóbatro, e que não tinham jamais ouvido o nome do rabi de Galileia, foi-lhes contada como um delito e pagaram vinte dracmas ao decurião.
Nas cercanias de Hébron arrastaram os solitários pelas barbas para fora das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocu­ltava o rabi – e dois mercadores fenícios que vinham de Jope com uma carga de malóbatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dracmas a cada decurião.
Eça lembra algures na Relíquia que a dracma valia, como o denário romano, o salário de um dia de trabalho. Vê-se que, da primeira versão para a seguinte, a «multa» aumentou: de vinte dracmas pagas a um decurião passou a cem pagas a cada um dos três decuriões. É obra!
Na primeira versão seria um ordenado mínimo (vinte dias de trabalho), na segunda lá para 600 contos. Tamanha extorsão!
Os solitários, sendo En-Geddi a terra dos Essénios, seriam também membros da seita.Fragmento dum manuscrito de Qumran

A propósito de malóbatro, lembre-se que Eça às vezes sentia a atracção do vocábulo exótico, muitas vezes geográfico, como também acontece neste conto.

O comum leitor de hoje leria as palavras Siquém e Corozaim, segundo a grafia que vem no conto, como Síxem, Xorazim. Não estará muito certo que se continue a adoptar uma grafia que evidentemente engana.
Já agora, a Decápola do conto é a Decápole, de deca+pólis, dez cidades, como metrópole, de méter+pólis, cidade-mãe. Também se fala aí dos Partas. Trata-se dos habitantes da Pártia, como Eça bem sabia, mas nós chamamo-lhes Partos, ao modo aliás do que acontecia com os Romanos[1].


[1] Os Partos foram batidos por Tibério, às ordens de Augusto, em 20 a. C. Públio dificilmente poderá ter participado nas batalhas, senão teria pelo menos 70 anos... e não teria uma filha adolescente...

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