quinta-feira, 30 de julho de 2009

VIAGEM AO MUNDO DO "SUAVE MILAGRE"

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Normalmente, associamos como inseparáveis a ironia e a prosa de Eça. Mas as duas coisas podem não andar juntas. Não serão muitos os textos onde isso acontece, mas às vezes ocorre. Então sentimos que há diferenças grandes. É como se Eça tivesse para tratar um assunto que o enchia de um espanto respeitoso. De assombro. A qualidade da prosa é a mesma, mas o mundo em que somos envolvidos é outro. Era assim por exemplo quando Eça falava de Antero. É assim no Suave Milagre[1].
A nossa palestra não significa que este conto seja uma história difícil, hermética. O seu leitor comum, menos prevenido, ficará até com a sensação final de o ter compreendido, de ser capaz de o recontar. Todavia, a esse leitor mais desprevenido, ter-lhe-á escapado uma parte significativa da informação do conto. Digamos mesmo, exagerando com certeza, que lhe escapou lá para 20% do que leu.

Conta o autor que havia um homem muito rico, de nome Obed, cujas vinhas, searas e gados atravessavam um momento difícil. Obed blasfemava ao ver afundar-se a sua opulência. É então que sabe de Jesus de Nazaré, o novo rabi galileu, taumaturgo poderoso. Imagina Obed que, se o mandar chamar, ele, bem pago, esconjurará todas as pragas das suas terras. Envia assim um grupo de servos em busca de Jesus. Partem eles para a Galileia, descem depois ao longo do Jordão até à Judeia, caminham para nascente e, muito tempo depois, regressam descoroçoados: não o tinham encontrado.
Nas proximidades de Cesareia, um homem poderoso, o centurião Públio Sétimo, via a sua única e estimada filha a finar-se. Nenhum esculápio descobria jeito de lhe devolver a saúde. Também ele ouve falar de Jesus e também ele envia uma embaixada à sua procura para que venha e lhe cure a filha. Os soldados dirigem-se à Galileia, descem o Jordão, percorrem a Judeia, caminham em direcção ao mar e sobem por fim para Cesareia sem novas para o seu comandante.
Nem ricos nem poderosos obtinham os serviços do novo profeta, que só intervinha onde o levava a sua vontade.
Havia na Samaria uma mulher muito pobre, mãe de um filho entrevado. Um dia um mendigo fala-lhe do novo rabi galileu. A criança sobressalta-se e pede à mãe que vá à sua procura. Mas como há-de ela ir e deixá-lo? De resto nem ricos nem poderosos o conseguiram trazer a suas casas... Mas o menino suspira:
- Eu queria ver Jesus.
E a porta abre-se e entra Jesus em pessoa.

Em qualquer lugar do mundo é possível situar a diegese de uma história onde entrem um homem rico, um homem poderoso, uma mulher pobre. Mas se nela quisermos meter Jesus, ficamos já muito limitados. Ainda assim, seria possível dispensar grandes referências espaciais ou a dados da história contemporânea. Recorda-se o que se passa com Aia, onde quase não existem topónimos.
Eça, porém, quis mergulhar a diegese da sua história bem fundo num espaço-tempo concreto.

A classificação do conto
Eça visitou a Palestina, como sabemos, pelo que a conhece. Comecemos por ver este mapa que ele então desenhou. Todos os seus topónimos aparecem no conto.
O Suave milagre era certamente, na concepção de Eça, um conto de «ressurreição arqueológica», classificação de que fala em 1893, na crónica intitulada «Positivismo e Idealismo», quando analisava nestes termos a literatura europeia contemporânea:
"Em literatura, estamos assistindo ao descrédito do naturalismo. O romance experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou (se é que jamais existiu, a não ser em teoria), e o próprio mestre do naturalismo, Zola, é cada dia mais épico, à velha maneira de Homero. A simpatia, o favor, vão todos para o romance de imaginação, de psicologia sentimental ou humorista, de ressurreição arqueológica (e pré-histórica!) e até de capa e espada, com maravilhosos imbróglios, como nos robustos tempos de D’Artagnan".
O que era então tendência europeia era nele já antigo. Eça já regressara à narrativa «de imaginação», fantástica, em 1880, com o satânico Mandarim. Depois viera a fantástica, e também satânica, Relíquia. O Suave Milagre (1891), esse não é nem fantástico nem muito menos satânico. Esta narrativa «de imaginação», de «ressurreição arqueológica», é conto muito pouco realista e de tema cristológico.
Neste sentido, alinha ao lado da Morte de Jesus (1870), do princípio da sua carreira e que vem nas Prosas Bárbaras, e d’A Relíquia.
Houve três versões deste conto, datando a primeira de 1885, com o título de Outro Amável Milagre. A intermédia intitulou-se Um Milagre. Esboço de mapa da Palestina desenhado por Eça de Queirós
É certamente legítimo comparar a última com a primeira e interpretar as diferenças como melhoramentos ou até correcções, mas esse não é o nosso caminho. Nós vamos fixar-nos sobretudo no seu aspecto de «ressurreição arqueológica», aspecto que no conto se verifica a vários níveis.

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[1] O texto que agora se publica foi apresentado em palestra que proferimos na Biblioteca Municipal Rocha Peixoto, da Póvoa de Varzim, em 16/11/2000.

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