quinta-feira, 30 de julho de 2009

Os espaços

Sem a viagem de Eça ao Oriente, de que – como aprendiz de realista? – redigiu umas notas, nenhum dos seus textos de temática cristológica teria sido certamente possível. Mas os mesmos também não teriam sido possíveis sem a leitura entusiasta da Bíblia, que ele descobriu ainda em Coimbra, ou sem o trabalho dos arqueólogos da primeira parte do século, que deram ar de coisa mais real, mais palpável, ao que era só coisa lida. Acrescentem-se a isto as interpretações positivistas do texto bíblico que negavam o sobrenatural, interpretações que Eça parece ter abraçado com convicção. E é aqui que entra o seu celebrado Renan com a Vida de Jesus.
No seu afã de definir o espaço palestino em que situa a acção, já vimos que semeou o romancista pela sua narrativa grande quantidade de topónimos (cerca de três dezenas), uns familiares ao leitor do texto bíblico, outros hauridos – com certeza indirectamente - na informação histórica de Fávio Josefo (historiador judeu do século I, nascido em 38).

Os topónimos do «Suave Milagre»

Dêmos agora uma olhadela também ao mapa que eu preparei. O mapa, evidentemente, já existia; o que eu fiz foi esbatê-lo para depois poder escrever sobre ele os nomes de cidades e vilas do conto, de modo a podermos identificar as terras mencionadas e seguir as viagens de que lá se fala.

Evitando, parece, reaproveitar espaços como Jericó e Jerusalém — que visitou – mas com lugar de relevo na Relíquia, Eça liga o seu conto sobretudo ao «país de Issacar» (versão de 1891), enclave entre a Galileia e a Samaria, voltado para o leste, para o Jordão e para a Decápole, onde ficava a célebre Bet Shean, que Pompeu rebaptizou para Citópolis, ou à Samaria (versão de 1885). Importante, mas localizado com menos precisão, é o lugar do forte do centurião Públio Sétimo (que parece aparentável com o centurião Cornélio, de Cesareia, de que se fala nos Actos).
Segundo a versão de 1885, Obed vive na Samaria, na importante e antiquíssima Siquém (Sichem no conto e no mapa de Eça). É nas proximidades de Siquém que ficam os montes, vizinhos entre si, Garizim e Ebal e o evangélico Poço de Jacob[1].
De acordo com a versão de 1891, vive o mesmo Obed em Enganim, que é cidade bíblica, mas, ao contrário do que o conto dá a entender, nunca foi grande. Grande e célebre, no «país de Issacar», foi a já referida Bet Shean. Dela levou, por exemplo, Nabucodonosor os Israelitas cativos para a Babilónia, e é hoje, com o seu extenso campo de ruínas – foram desenterrados pelos arqueólogos estratos de dezoito cidades -, o seu teatro romano restaurado e o seu anfiteatro, um importante destino turístico.
Não é impossível que onde Eça diz Enganim quisesse significar mesmo Bet Shean... Não tenho conhecimento de que haja ruínas de Enganim...
Teatro restaurado de Bet Shean
Do aquartelamento de Públio Sétimo, vê-se que não ficaria longe do monte Carmelo, nem da mítica Meguido, a apocalíptica Armagedão, ou antes Har­ Meguido, monte Meguido, situada junto à estrada que vai do Egipto para a Síria e Babilónia e que era lugar fatal do encontro entre os exércitos destes países que tantas vezes ao longo da história se digladiaram.

Os Essénios

A presença do grupo sócio-religioso dos Essénios na narrativa, mesmo que só de passagem, integra-se com certeza na mesma orientação arqueológica que desde o princípio assinalámos. Olhemos agora para os textos que nos falam deles.

Os servos seguiram, correndo, sem repouso, até ao sítio onde o Jordão, mais baixo, tem um largo remanso e dorme um instante, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Da entrada de uma cabana, feita de rama, um Essénio, coberto de peles de cabra, soturno e selvagem, gritou-lhes que Jesus, sozinho, se afastara para além. Mas aonde era além?
O Essénio, com um gesto brusco, indicou vagamente as montanhas da Judeia, Engaddi, e as fronteiras roxas do reino de Asketh onde se ergue, sinistra sobre o seu rochedo, a cidadela de Makaur.

Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio até adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo rabi da Galileia que, como os Essénios, ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados. O Essénio murmurou que o rubi atravessara o oásis de Engaddi, depois se adiantara para além... – Mas onde, além? – Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de além-Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur...
O mapa de Eça deu-nos uma certeza, Makaur é a actual Mukawir jordana, a Maqueronte de Herodes Antipas, onde João Baptista foi decapitado, e que na Relíquia se chama Macheros, isto é, Makeros. Pela Relíquia, onde é tão activo na defesa de Jesus o essénio Gad, sabemos que Eça coloca a «pátria» dos Essénios no oásis de Engaddi, actual En­-Geddi. Sabemos, ainda pela Relíquia, que a proximidade entre João Baptista e os Essénios – no entender de Eça – era grande. No texto da segunda versão do conto, o essénio com o seu cordeirinho parece mesmo o Precursor[2].
A referência aos «tanques purificados» é interessante. Trata-se certamente dos mikvehs das abluções judaicas – e essénias em particular. Foi delas que nasceu, entre os Essénios, a ideia do baptismo, palavra que na origem significava mergulho, imersão.
Na segunda versão, esta personagem torna-se simpática, sendo que na primeira era de uma antipatia primária, brutal. Mas não se esqueça que há frases no Evangelho donde emerge de S. João uma imagem de grande rudeza.
Vaso essénio. Em 1947 e anos seguintes fizeram-se grandes descobertas de manuscritos essénios. Alguns encontravam-se neste jarro.


[1] Siquém é hoje Nablus, de Nea+Pólis, Cidade Nova, como lhe chamou Vespasiano quando a reconstruiu em finais do século I, e é terra palestiniana, portanto menos explorada turisticamente e sem site de préstimo na Internet. Garizim também ocorre no Evangelho.[2] Para o mosteiro dos Essénios podia-se entrar; em termos práticos, quase se não podia sair, devido aos compromissos aí assumidos em termos de alimentação, por exemplo. O egresso morreria à fome. Por isso, S. João Baptista, que terá passado parte da infância entre eles (senão, como poderia sobreviver em menino no deserto?), nunca terá sido verdadeiro monge essénio.

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